sábado, 22 de outubro de 2011

"A Missão: Lembrança de uma Revolução ", de Heiner Müller - "Der Auftrag: Erinnerung an eine Revolution" (1978)

"A Missão" é a adaptação e estilização de motivos da novela de Ana Seghers "Das Licht auf dem Galgen" ("A Luz sobre a Forca"). Certamente, um dos textos mais belos, em sua plasticidade, do repertório dramatúrgico alemão contemporâneo dos anos setenta em sua fuga metafísica no manancial romântico da tradição. Ao lado de Botho Strauss, Heiner Müller foi capaz de tecer um imaginário robusto das ruínas e das sombras dessa herança sobre o presente. Se em Botho Strauss predominava a nostalgia daquela peregrinação romântica ao vazio do coração de gelo da República Federal na trajetória emblemática de Lotte, um impasse já desfeito pela história real, mas também aquela ambição científica e cosmológica de cartografar o lugar orgânico do humano diante do abismo da Grande Ciência e seus "lógicos" poderosos e novas descobertas extraordinárias, como em "O Grande e o Pequeno", Müller, sempre projetou suas imagens contra o zênite da imobilidade mítica das utopias e seu terror paralisante, pois somente assim é possível "ler" a tessitura histórica a contrapelo, naquele sentido que assimilou da filosofia da história de Walter Benjamin. É quase que um réquiem existencial imaginar que foram estas mesmas imagens que me seduziram e me conduziram, finalmente, ao exílio na Alemanha. Lembranças difusas de uma outra vida. "A duras penas recuperaremos as lágrimas", afirmou certa vez Strauss, citando a prece noturna de Heine. Contudo, insone, na zombilandia, tenho todas as noites um encontro marcado com o anjo do desespero.















Sou o anjo do desespero. Com minhas mãos distribuo a embriaguês, o atordoamento, o esquecimento, prazer e dor dos corpos. Meu discurso é o silêncio, meu canto é o grito. Sob a sombra de minhas asas vive o horror. Minha esperança é o último alento. Minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com a qual o morto abre o caixão. Sou aquele que será. Meu vôo é a revolta, meu céu é o abismo de amanhã.

Galloudec a Antoine. Escrevo esta carta no meu leito de morte. Escrevo em meu nome e em nome do cidadão Sasportas, que foi enforcado em Port Royal. Informo-lhe que fomos obrigados a desistir da missão que a Convenção nos confiou por seu intermédio, já que não nos foi possível cumpri-la. Talvez outros tenham melhor êxito. De Debuisson o senhor não ouvirá mais falar, ele vai bem. É sempre assim, os traidores vivem bem quando os povos são banhados em sangue. O mundo é assim e não está certo. Desculpe a minha letra, me amputaram uma perna e estou escrevendo com febre. Espero que esta carta o encontre com boa saúde e subscrevo-me com saudações republicanas.

[MARINHEIRO, ANTOINE, MULHER)

MARINHEIRO
O senhor é o cidadão Antoine. Então aqui está uma carta para o senhor. De um tal de Galloudec. Não é culpa minha se a carta já é velha e o assunto talvez já esteja resolvido. Os espanhóis nos prenderam em Cuba, depois os ingleses em Trinidad. Depois fui roubado, numa rua, em Londres, porque estava bêbado, mas não encontraram a carta. Quanto a este Galloudec, não vai envelhecer mais. Morreu num hospital em Cuba, um meio prisão meio hospital. Ele estava lá com gangrena, eu com febre. PEGUE ESTA CARTA ELA TEM QUE CHEGAR E MESMO QUE SEJA A ÚLTIMA COISA QUE VOCÊ FAÇA TEM DE FAZER ISTO POR MIM foram suas últimas palavras. E também o endereço de um escritório e o seu nome, se o seu nome é esse mesmo, Antoine, ninguém sabe do senhor lá onde fica o escritório. Um que mora num porão atrás do andaime me mandou a uma escola, onde dizem que um tal de Antoine trabalhou como professor. Mas lá também não sabiam nada dele. Então uma faxineira me disse que o sobrinho dela viu o senhor por aqui. Ele é carroceiro. E ele me descreveu o senhor, se o senhor for mesmo o tal.

ANTOINE
Não conheço nenhum Galloudec.

MARINHEIRO
Não sei o que havia de tão importante para ele na carta. Alguma coisa a ver com uma missão. Da qual ele tem que desistir, para que outros continuem o seu trabalho. Que trabalho era esse, não sei. No fim ele não falava mais de outra coisa. A não ser quando gritava, e gritava de dor, por causa da ferida. A dor vinha em ondas. E demorou bastante tempo, até que terminou morrendo. O doutor disse que ele tinha o coração muito forte, já devia ter morrido umas dez vezes. Às vezes o homem não aguenta muito, às vezes demais. A vida é uma porcaria. O outro, de quem ele fala na carta, um negro, teve uma morte mais rápida. Ele me leu a carta, Galloudec, para que eu soubesse de cór, caso ela se perdesse. E se o senhor ainda não lembra dele, vou lhe contar o que fizeram com ele e como ele morreu, o senhor não estava lá. Primeiro cortaram a perna dele até o joelho, depois o resto. Era a esquerda. Então

ANTOINE
Não sei de nenhuma missão. Não confio missões, não sou nenhum senhor. Ganho meu dinheiro dando aulas particulares. É pouco. Massacres, já vi bastante. Conheço bem a anatomia do homem. Galloudec

[MULHER COM VINHO PÃO QUEIJO]
MULHER
Você tem visita. Eu vendi uma condecoração. Aquela de Vendéia, onde vocês massacraram os camponeses pela república.

ANTOINE
Sim.

MARINHEIRO
Pelo que vejo, o senhor ainda tem tudo. Ao contrário deste Galloudec, que o senhor não conhece e que está morto como uma pedra. O outro chamava-se Sasportas. Foi enforcado em Port Royal, se é que isso lhe interessa, por causa dessa missão, essa sobre a qual o senhor não sabe nada, na Jamaica. A forca está em cima de um penhasco. Quando eles estão mortos, a corda é cortada e eles caem no mar. Os tubarões se encarregam do resto. Obrigado pelo vinho.

ANTOINE
Sasportas. Eu sou o Antoine que você procurava. Tenho de ser cuidadoso, a França não é mais uma república, nosso cônsul tornou-se imperador e conquista a Rússia.

De boca cheia é mais fácil falar sobre uma revolução perdida. Sangue, coagulado em medalhas de metal. Os camponeses também não tinham uma solução melhor, não é. E talvez tivessem razão, não é. O comércio floresce. Quanto aos do Haiti, agora entregamos a eles terra para comer. Era a república dos negros. A liberdade leva o povo às barricadas, e quando os mortos ressuscitam, veste uniforme. Agora vou lhe confessar um segredo, ela também não passa de uma puta. E já consigo rir disso tudo. Ahahah. Mas agora, aqui, há uma coisa vazia, que antes vivia. Eu estava lá quando o povo assaltou a Bastilha. Eu estava lá quando a cabeça do último Bourbon caiu na cesta. Nós colhemos a cabeça dos aristocratas. Nós colhemos a cabeça dos traidores.

MULHER
Bela colheita. Você está bêbado de novo, Antoine.

ANTOINE
Ela não gosta quando eu falo da minha época gloriosa. Diante de mim, a Gironda também tremia. Olhe só para ela, a minha França. Os seios secos. Entre as coxas, o deserto. Um navio morto na rebentação do século. Olhe só como ela se afunda. A França precisa de um banho de sangue, e o dia chegará.

(Antoine derrama vinho tinto sobre a cabeça.)

MARINHEIRO
Não entendo nada disso. Sou marinheiro, não acredito em política. O mundo é diferente em toda parte. Essa é a carta. (Sai.)

ANTOINE (grita)
Cuidado, marinheiro, quando sai de minha casa. Os policiais de nosso ministro Fouché não perguntam se você acredita em política. Galloudec. Sasportas. Onde está a tua perna, Galloudec Por que a tua língua está fora da tua boca, Sasportas. O que vocês querem de mim. Sou responsável pelo teu pedaço de perna. E pela tua corda. Devo cortar uma perna. Quer que eu me enforque ao teu lado. Pergunte ao imperador pela tua perna, Galloudec. Mostre a língua ao teu imperador, Sasportas. Ele vence na Rússia, posso mostrar o caminho a vocês. O que querem de mim. Pra fora. Desapareçam. Diz a eles, mulher. Diz para irem embora, não quero mais vê-los. Vocês ainda estão aí. Tua carta chegou, Galloudec. Está aqui. Em todo caso, para vocês já acabou tudo. VIVA A REPÚBLICA. (Ri.) Vocês pensam que eu vou bem, não é. Estão com fome. Tomem. (Joga comida sobre os mortos.)

MULHER
Vem para a cama, Antoine.

ANTOINE
ESTA É A ASCENÇÃO POR POUCO
DINHEIRO
ENQUANTO AGÜENTA
NAS GRADES DO PEITO
O CÃO O CORAÇÃO

(Durante o ato sexual surge o anjo do desespero.)

ANTOINE (voz) Quem é você.

MULHER (voz)
Sou o anjo do desespero. Com minhas mãos distribuo a embriaguês, o atordoamento, o esquecimento, prazer e dor dos corpos. Meu discurso é o silêncio, meu canto é o grito. Sob a sombra de minhas asas vive o horror. Minha esperança é o último alento. Minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com a qual o morto abre o caixão. Sou aquele que será. Meu vôo é a revolta, meu céu é o abismo de amanhã.

Chegamos à Jamaica, três emissários da Convenção francesa, nossos nomes Debuisson Galloudec Sasportas, nossa missão uma revolta de escravos contra o domínio da coroa britânica em nome da República da França. Que é a mãe-pátria da revolução, o terror dos tronos, a esperança dos pobres. Onde todos os homens são iguais sob a arma da justiça. Que não tem pão para aplacar a fome de seus subúrbios, mas tem mãos suficientes para levar a tocha da liberdade igualdade fraternidade a todos os países. Estávamos na praça do porto. No meio da praça havia uma jaula. Ouvíamos o vento do mar, o duro rumorejar das folhas das palmeiras, o arrastar das vassouras de palmeira com as quais as negras varriam a poeira da praça, os gemidos do escravo na jaula, a queimada. Víamos os seios das negras, o corpo riscado de sangue do escravo na jaula, o palácio do governador. Dissemos: isto é Jamaica, vergonha das Antilhas, navio negreiro no mar do Caribe.

SASPORTAS
Até termos acabado o nosso trabalho.

GALLOUDEC
Você pode começar logo. Você não veio para cá para libertar os escravos. Este que está na jaula é um escravo. Amanhã será o que era, se não for libertado hoje.

DEBUISSON
Eles expõem os escravos nas jaulas quando tentam fugir ou por outros crimes, como exemplo, até que sejam torrados pelo sol. Já era assim quando fui embora da Jamaica, há dez anos. Não olhe para lá, Sasportas, não podemos ajudar um só.

GALLOUDEC
Sempre o que morre é um só. Depois se contam os mortos.

DEBUISSON
A morte é a máscara da revolução.

SASPORTAS
Quando eu for embora daqui, outros vão estar nas jaulas, de pele branca, até que o sol os queime até ficarem pretos. Então muitos terão sido ajudados.

GALLOUDEC
Talvez seja melhor nós instalarmos uma guilhotina. E mais limpo. A Viúva Vermelha é a melhor mulher de limpeza.

DEBUISSON
A amada dos subúrbios.

SASPORTAS
Continuo achando que para uma pele branca uma jaula é uma coisa boa, quando o sol está bem alto.

GALLOUDEC
Não estamos aqui para jogar um contra o outro a cor de nossas peles, cidadão Sasportas.

SASPORTAS
Nós não seremos iguais enquanto não tivermos arrancado a pele um do outro.

DEBUISSON
Esse foi um mau começo. Coloquemos nossas máscaras. Eu sou aquele que fui: Debuisson, filho de senhor de escravos na Jamaica, herdeiro de uma plantação com quatrocentos escravos. Voltando ao seio da família para tomar conta de sua herança, regressando do sombrio céu da Europa, escurecido com a fumaça dos incêndios e o vapor de sangue da nova filosofia, para o ar puro do Caribe, depois que os horrores da Revolução lhe abriram os olhos para a verdade eterna, de que tudo que é velho é melhor que tudo que é novo. Além disso, sou médico, benfeitor da humanidade, sem distinguir ninguém, senhores ou escravos. Curo um para o outro, para que tudo fique como está, enquanto dure, meu rosto é o rosto rosado do senhor de escravos, que nada tem a temer deste mundo a não ser a morte.

SASPORTAS
E seus escravos.

DEBUISSON
Quem é você Galloudec.


GALLOUDEC
Um camponês da Bretanha que aprendeu a odiar a Revolução na chuva de sangue da guilhotina, que queria que a chuva tivesse sido mais abundante e não somente sobre a França, fiel servidor do senhor Debuisson, creio na ordem sagrada da monarquia e da igreja. Espero não ter que rezar demais por isso.

DEBUISSON
Você saiu duas vezes do papel, Galloudec. Quem é você.

GALLOUDEC
Um camponês da Bretanha que aprendeu a odiar a Revolução na chuva de sangue da guilhotina, fiel servidor do senhor Debuisson, creio na ordem sagrada da monarquia e da igreja.

SASPORTAS (parodiando)
Creio na ordem sagrada da monarquia e da igreja. Creio na ordem sagrada da monarquia e da igreja.

DEBUISSON
Sasportas; Sua máscara.

GALLOUDEC
Para você não deveria ser difícil representar o papel de escravo, Sasportas, com a tua pele negra.

SASPORTAS
Fugindo da revolução negra triunfante no Haiti, me juntei ao senhor Debuisson, porque Deus me criou ara a escravidão. Sou escravo dele. Isso basta.

(Galloudec aplaude.)

SASPORTAS
Da próxima vez vou lhe responder com a faca, cidadão Galloudec.

GALLOUDEC
Sei que você faz o papel mais difícil, Sasportas. Um papel que está escrito no teu corpo.

SASPORTAS
Com os chicotes que nas nossas mãos escreverão um novo alfabeto sobre outros corpos.

DEBUISSON
Revolução triunfante não é bom. Não se diz uma coisa dessas diante dos senhores. Revolução negra também não é bom. Negros fazem tumulto, quando chega a hora, não revolução.

SASPORTAS
A revolução não venceu no Haiti. A revolução negra.

DEBUISSON
Foi a ralé que venceu. No Haiti domina a ralé.
(Sasportas cospe.)

DEBUISSON
Você está cuspindo na direção errada: sou o teu senhor. Diz isso agora.

SASPORTAS
Fugindo da ralé, que transformou o Haiti numa cloaca.

GALLOUDEC
Cloaca é bom. Você aprende depressa, Sasportas.

DEBUISSON
Tire as mãos do rosto e olhe para a carne que morre nesta jaula. Você também, Galloudec. E a tua carne, a tua e a minha. Esse gemido é a Marselhesa dos corpos, sobre os quais será construído um mundo novo. Aprendam a melodia. Vamos ouvi-la ainda por muito tempo, queiramos ou não, é a melodia da revolução, da nossa missão. Muitos vão morrer nesta jaula antes que o nosso trabalho esteja concluído. Muitos vão morrer nesta jaula porque cumprimos o nosso trabalho. Isto é o que fazemos pelos nossos semelhantes com o nosso trabalho, talvez apenas isso. Nosso lugar vai ser na jaula, se nossas máscaras se rasgarem antes da hora. A revolução é a máscara da morte. A morte é a máscara da revolução.


(Um negro gigantesco entra.)

DEBUISSON
Este é o escravo mais antigo da minha família. É surdo e mudo, uma coisa entre o homem e o cão. Ele vai cuspir na jaula. Talvez você devesse fazer o mesmo, Sasportas, para aprender a odiar a tua pele negra, para o dia em que tivermos necessidade dela. Então ele vai beijar meus sapatos, já lambe os lábios, olhem, e vai me carregar sobre as costas, a mim, seu velho e novo senhor, até a casa de meus pais, grunhindo de prazer. A família abre seu seio, amanhã começa o nosso trabalho.

(O negro gigantesco cospe na jaula, olha para Sasportas, inclina-se diante de Galloudec, beija os sapatos de Debuisson, carrega-o nas costas. Galloudec e Sasportas seguem um depois do outro.)

A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA DA MORTE A MORTE É A MÁSCARA DA REVOLUÇÃO A REVOLUÇÃO É A MÁSCARA


(A volta do filho pródigo. Pai e mãe no armário aberto. Num trono, o Primeiro Amor. Debuisson Galloudec Sasportas são despidos e fantasiados por escravos; Debuisson como senhor de escravos, Galloudec como feitor com açoite, Sasportas como escravo.)



PRIMEIRO AMOR
O pequeno Vítor brincou de revolução. Agora volta ao lar, regressa ao seio da família. Ao lar para papai com a cabeça cheia de vermes. Ao lar para mamãe com seu cheiro de flores podres. Você está ferido, pequeno Vítor. Chegue mais perto, mostre as feridas. Você não me conhece mais. Não precisa ter medo, pequeno Vítor. De mim, não. Não do teu primeiro amor. Que você enganou com a revolução, teu segundo amor sujo de sangue. Com o qual você rolou pela sarjeta durante dez anos, fazendo concorrência à plebe. Ou pelas capelas mortuárias, onde ela conta suas presas. Sinto o perfume dela, estrume de estábulos. Lágrimas, pequeno Vítor. Você amou tanto a ela. Ah Debuisson. Eu tinha te dito, ela é uma puta. A serpente com a vagina sedenta de sangue.

A escravidão é uma lei da natureza, velha como a humanidade. Porque diante dela deveria parar. Olhe para os meus escravos, e os teus, nossa propriedade. Durante toda a vida foram animais. Porque deveriam se tornar homens, só porque na França está escrito,num papel. Quase ilegível de tanto sangue, mais ainda do que aquele que foi derramado aqui pela escravidão na tua e na minha bela Jamaica. Vou contar a você uma história: em Barbados, um proprietário de lavoura foi morto dois meses depois da abolição da escravatura. Seus antigos escravos voltaram. Ajoelharam-se como na igreja. E sabe o que queriam. Voltar à proteção da escravidão. Isto é o homem: seu primeiro lar é sua mãe, uma prisão. (Escravos levantam as saias da mãe, no armário, sobre a cabeça dela.) Aqui está aberta a pátria, aqui boceja o seio da família. Diga uma única palavra, se você quer voltar, e ela te enfia para dentro, a idiota, a mãe eterna.

O pobre homem de Barbados não teve tanta sorte. Seus Não-Mais-Escravos mataram ele com cacetes, como se fosse um cão raivoso, porque ele não os trouxe de volta da fria primavera da sua liberdade para o jugo de seu amado chicote. Agrada-lhe a história, cidadão Debuisson. A liberdade mora nas costas dos escravos, a igualdade sob o machado. Você quer ser meu escravo, pequeno Vítor. Você me ama. Estes são os lábios que te beijaram. (Escrava pinta nela uma grande boca.) Eles se lembram da tua pele, Vítor Debuisson. Estes são os seios que te aqueceram, pequeno Vítor. (Escrava pinta o bico dos seios etc) Eles não esqueceram nem a tua boca nem as tuas mãos. Esta é a pele que bebeu teu suor. Este é o colo que recebeu o teu sêmem, que me queima o coração. (Escrava pinta um coração azul.) Você está vendo a chama azul. Você sabe como em Cuba se pegam os escravos fugitivos. São caçados com cães sangüinários. E assim, cidadão Debuisson, quero retomar o que tua puta, a revolução, roubou de mim, a minha propriedade. (Escravos-cães, acompanhados por Galloudec e seu chicote, pelo fantasma do pai com gritos de acuo, caçam Debuisson.)

Com os dentes dos meus cães eu quero arrancar de tua carne manchada, os vestígios das minhas lágrimas, meu suor, os meus gritos de prazer. Quero do teu corpo, com as lágrimas de suas garras, talhar meu vestindo de noiva. Teu hálito, que tem gosto dos corpos mortos de reis, quero traduzir para a linguagem da tortura, que é apanágio dos escravos. Quero comer teu sexo e parir um tigre, que devore o tempo, com o qual os relógios batem meu vazio coração atravessado pelas chuvas dos trópicos. (Escrava coloca-lhe uma mascara de tigre.) ONTEM COMECEI / A MATAR-TE MEU CORAÇÃO / AGORA EU AMO / TEU CADÁVER / QUANDO ESTIVER MORTA / MEU PÓ GRITARÁ POR VOCÊ. Quero te dar de presente esta cadela, pequeno Vítor, para que você a encha com meu sêmem corrompido. Mas antes quero que ela seja açoitada para que o sangue de vocês se misture. Você me ama, Debuisson. Não se deve deixar uma mulher sozinha.



(Escravos tomam o chicote de Galloudec, fecham o armário, tiram a maquilagem do Primeiro Amor, instalam -Debuisson no trono, o Primeiro Amor serve como banquinho para os pés, transformam Galloudec e Sasportas em Danton e Robespierre. Está aberto o teatro da revolução. Enquanto os dois atores e o público tomam seus lugares, ouve-se o diálogo dos pais no armário.)

PAI
Isso é a ressureição da carne. Já que o verme rói eternamente e o fogo nunca se apaga. MÃE — Outra vez ele está fornicando por aí. Criquecraque, vejam, agora o meu coração está quebrado. PAI — Eu ofereço a você, meu filho. Te ofereço as duas, preta e ou branca. MÃE — Tirem a faca do meu ventre. Putas pintadas. PAI — De joelhos, canalha, pede a benção à tua mãe. MÃE — LÁ EM CIMA SOBRE A MONTANHA / SOPRA O VENTO / LÁ MARIA SACRIFICA / O FILHO DE DEUS. De volta para a Groenlândia. Venham, meus filhos. Lá o sol aquece todos os dias. PAI — Fechem a boca dessa idiota.

SASPORTASROBESPIERRE
Vá para o seu lugar, Danton, no pelourinho da história. Olhem só o parasita, que engole o pão dos que têm Eome. O libertino, que estupra as filhas do povo. O traidor, que torce o nariz diante do cheiro de sangue com o qual a revolução purifica o corpo da nova sociedade. Devo te contar por que você não pode mais ver sangue, Danton. Revolução, você disse. Pegar a panela da carne, essa foi a tua revolução. Entrada grátis no bordel. Para isso você se pavoneou nas tribunas sob o aplauso do populacho. O leão que lambe as botas dos aristocratas. Você gosta da saliva dos Bourbons. Também se sente quente no cu da monarquia. Você disse audácia. Vá, sacode tua juba empoeirada. Você não vai desprezar a virtude mais tempo que o que leva para a cabeça cair sob a lâmina da justiça. Você não pode dizer que eu não te preveni, Danton. Agora a guilhotina vai falar com você, a sublime invenção da nova era vai passar sobre você como sobre todos os traidores. Você vai entender a linguagem dela, você que falou tão bem dela em setembro. (Escravos cortam a cabeça de Danton dos ombros de Galloudec, jogam-na uns para os outros. Galloudec consegue pegá-la, colocando-a debaixo do braço.) Por que você não coloca a tua bela cabeça no meio das pernas, Danton, onde está a sede da tua inteligência, entre os piolhos da tua libertinagem e as úlceras do teu vício.

(Sasportas arranca a cabeça de Danton dos braços de Galloudec. Galloudec vai atrás da cabeça. Coloca—a novamente.)

GALLOUDECDANTON
Agora é a minha vez. Olhem o macaco com a queixada quebrada. O bebedor de sangue que não consegue conter sua baba. Você encheu demais a boca, Incorruptível, com teu sermão sobre a virtude. E este o agradecimento da pátria: o punho de um gendarme. (Os escravos arrancam de Sasportas a atadura da cabeça de Robespierre, a queixada cai. Enquanto Sasportas procura a atadura e a queixada.) Deixou cair alguma coisa. Está sentindo falta de alguma coisa. A propriedade é um roubo. Você sente o vento no pescoço. Is-to é a liberdade. (Sasportas encontrou novamente a atadura e a queixada e completa a cabeça de Robespierre.) Cuide para que por amor ao povo você não perca completamente a cabeça, Robespierre. Revolução, você disse. A lâmina da justiça, não é. A guilhotina não é uma fábrica de pão. Economia, Horácio, economia. (Escravos derrubam a cabeça de Robespierre dos ombros de Sasportas e jogam com ela, como se fosse uma bola de futebol.) É isto a igualdade. VIVA A REPÚBLICA. Eu não disse a você: você é o próximo. (Entra no jogo de futebol dos escravos.) É isto a fraternidade. (Sasportasrobespierre chora.) O que é que você tem contra o futebol. Cá entre nós: devo dizer-te porque você se mostrava tão ansioso pela minha bela cabeça. Aposto que se você baixar as calças, cai pó. Damas e cavalheiros. O teatro da revolução começou. Atração: o homem sem abdômem. Maximiliano o Grande. Max o Virtuoso. O que peida na poltrona. O punheteiro de Arras. Robespierre o sangüinário.

SASPORTASROBESPIERRE (recolocando a cabeça)
Meu nome está no panteão da história.


GALLOUDECDANTON
NA FLORESTA UM HOMENZINHO
ESTÁ MUDO E PARADO
USANDO UM MANTINHO
DE PÚRPURA PINTADO

SASPORTASROBESPIERRE
Parasita sifilítico criado de aristocrata.

GALLOUDECDANTON
Hipócrita eunuco lacaio de Wall Street.

SASPORTASROBESPIERRE
Porco.

GALLOUDECDANTON
Hiena.

(Derrubam mutuamente as cabeças. Debuisson aplaude. Escravos tiram-no do trono, colocando Sasportas em seu lugar, Galloudec serve como banquinho para os pés. Coroação de Sasportas.)

SASPORTAS
O teatro da revolução branca está no fim. Nós te condenamos à morte, Vítor Debuisson. Porque tua pele é branca. Porque teus olhos viram a beleza de nossas irmãs. Porque tuas mãos tocaram a nudez de nossas irmãs. Porque teus pensamentos comeram seus seios seus corpos seus sexos. Porque você é um proprietário, um senhor. Por isso te condenamos à morte, Vítor Debuisson. Que as serpentes devorem tua merda, os crocodilos teu cu, as piranhas teus testículos. (Debuisson grita.) A miséria de vocês é que não sabem morrer. Por isso matam tudo ao redor de vocês. Pelas vossas regras mortas, nas quais o êxtase não tem lugar. Pela vossa revolução sem sexo. Você ama esta mulher. Nós a tomamos para que você morra mais facilmente. Quem nada possui, morre mais facilmente. O que ainda te pertence. Diz depressa, nossa escola é o tempo, ele não volta e nenhum alento para a didática, quem não aprende também morre. Tua pele. De quem você arrancou ela. Tua carne nossa fome. Teu sangue esvazia nossas veias. Teus pensamentos, não é. Quem sua pelas vossas filosofias. Mesmo tua urina e tua merda são exploração e escravatura. Do teu sêmem, nem se fala, uma destilação de cadáveres. Agora, nada mais te pertence. Agora, você não é nada. Agora, você pode morrer. Enterrem-no.



Estou cercado de homens que não conheço, num velho elevador de armação metálica que range durante a ascenção. Estou vestido como um empregado de escritório ou como um operário em dia feriado. Até mesmo pus uma gravata, o colarinho incomoda o meu pescoço, estou transpirando.

Quando mexo a cabeça, o colarinho me aperta o pescoço. Tenho hora marcada com o chefe (em pensamento, chamo-o de Número Um), seu escritório fica no quarto andar, ou será que é no vigésimo, é só pensar nisso e já não tenho mais certeza. A notícia da minha entrevista com o chefe (que, em pensamento, eu chamo de Número Um) me alcançou no subsolo, uma área extensa com compartimentos vazios de concreto e placas indicativas de abrigo anti-aéreo para caso de bombardeio. Suponho que deve ser uma missão que me será confiada, verifico se a minha gravata está bem colocada e aperto o nó. Eu gostaria de ter um espelho para poder verificar a posição de minha gravata. E inconcebível perguntar a um estranho como está o nó da própria gravata. As gravatas dos outros homens dentro do elevador estão impecáveis. Alguns deles parece que se conhecem. Falam em voz baixa sobre alguma coisa que não entendo.

Mesmo assim, a conversa deles deve ter-me distraído: na parada seguinte, leio, assustado, no painel que indica os andares em cima da porta do elevador, o número oito. Subi muito, a não ser que ainda tenha mais da metade do trajeto pela frente. O fator tempo é decisivo. CHEGAR CINCO MINUTOS ANTES DA HORA / ESSA É A VERDADEIRA PONTUALIDADE.

Quando olhei da última vez o meu relógio de pulso, marcava dez horas. Me lembro que senti um alívio. Faltam ainda quinze minutos para o meu encontro com o chefe. Quando olhei outra vez, só tinham passado cinco minutos. Agora, entre o oitavo e o nono andar, olhando outra vez para o meu relógio, ele marca exatamente dez horas, quatorze minutos e quarenta e cinco segundos. Não é uma questão de verdadeira pontualidade, o tempo já não trabalha mais a meu favor.

Rapidamente reflito sobre a minha siftuação: posso saltar na próxima parada e descer pela escadaria, três degraus de cada vez, até o quarto andar. Se for errado, naturalmente, isso vai ser uma perda de tempo irrecuperável. Posso também subir de elevador até o vigésimo andar e se não for lá o escritório do chefe, posso descer outra vez ao quarto andar, isso se o elevador não enguiçar, ou então descer a pé pela escada (três degraus de cada vez) com o risco de quebrar uma perna ou o pescoço, justamente por estar com pressa. Já me vejo estendido numa padiola que, a pedido meu, é levada ao escritório do chefe e depositada diante da sua escrivaninha, ainda desejando servir porém não mais apto.

Por enquanto, tudo se concentra na questão que é impossível de ser respondida a priori por causa da minha negligência, em que andar o chefe (a quem, em pensamento, eu chamo de Número Um) me espera com uma importante missão. (Deve tratar-se de uma missão importante, senão teria encarregado um subordinado de transmiti-la).

Uma olhada no relógio me afirma de maneira irrefutável que há muito tempo, até para a pontualidade mais elementar, é tarde demais, ainda que o nosso elevador, como se vê a um segundo olhar, ainda não tenha alcançado o décimo segundo andar: o ponteiro das horas está marcando as dez, o dos minutos está marcando cinqüenta, o dos segundos há tempo que já não importa mais. Parece que tem alguma coisa errada no meu relógio, mas nem para ver que horas são há mais tempo: estou sozinho no elevador, sem ter notado quando os outros cavalheiros desceram. Com um terror que me pega na raiz dos cabelos, olho os ponteiros do meu relógio, não consigo mais tirar os olhos deles: estão girando em torno do mostrador cada vez mais depressa, de forma que entre uma e outra piscada de olhos, passam cada vez mais horas. Estou percebendo que já há muito tempo alguma coisa não andava certa: com o meu relógio, com este elevador, com o tempo. Me abandono a fantásticas especulações: a força da gravidade diminui, uma perturbação, uma espécie de gagueira na rotação da terra, como um cãimbra nas pernas no futebol. Lamento não ter suficientes conhecimentos de física para poder resumir numa fórmula científica a gritante contradição entre a velocidade do elevador e o passar do tempo indicado pelo meu relógio. Eu devia ter prestado mais atenção na escola. Ou então li os livros errados: poesia, em vez de física. O tempo está fora dos eixos e num lugar qualquer do quarto ou do vigésimo andar (o OU corta como uma faca o meu cérebro negligente), numa sala provavelmente ampla, recoberta com um pesado tapete, atrás de sua escrivaninha, que provavelmente está instalada na parte mais estreita, no fundo da sala, de frente para a entrada, o chefe (a quem, em pensamento, chamo de Número Um) espera por mim, o fracassado, com minha missão.

Talvez o mundo esteja se despedaçando e a minha missão, que era tão importante que o chefe quis transmiti-la pessoalmente, talvez tenha perdido o sentido por causa de minha negligência. SEM EFEITO no linguajar das repartições públicas, que aprendi tão bem (ciência supérflua!),

NO ARQUIVO, que ninguém mais virá consultar, porque justamente ela se referia às últimas providências possíveis para deter o fim do mundo, cujo inído estou vivendo prisioneiro deste elevador enlouquecido com o meu relógio enlouquecido. Sonho desesperado dentro do sonho: tenho a capacidade, sobre mim mesmo, de transformar meu corpo num projétil que, atravessando o teto do elevador, ultrapassa o tempo. Despertar frio no lento elevador, olhar para o relógio em disparada. Imagino o desespero do Número Um.

Seu suicídio. Sua cabeça, cujo retrato enfeita todas as salas de repartição, sobre a escrivaninha. Um fio de sangue correndo de um buraco de bordas escuras na fronte (provavelmente à direita). Não ouvi nenhum tiro, mas isto não prova nada, as paredes de seu escritório naturalmente são à prova de som, imponderáveis devem ter sido levados em consideração durante a construção e o que se passa no escritório do chefe não é da conta da população, o poder é solitário. Eu saio do elevador na parada seguinte e me encontro sem missão, a gravata agora inútil ainda ridiculamente amarrada debaixo do queixo, numa rua de uma aldeia do Peru.

Barro seco com marcas de rodas. De ambos os lados da rua, uma planície árida com marcas estranhas de capim e manchas de mata cinzenta procura alcançar indistintamente o horizonte, sobre o qual pairam montanhas na névoa. A esquerda, um barraco que parece abandonado, as janelas, buracos negros com restos de vidro. Diante de uma parede coberta com cartazes de propaganda de produtos de uma civilização estranha, dois gigantescos indígenas parados. De suas costas nasce uma ameaça. Me pergunto se devo regressar. Ainda não fui visto. Nunca, durante minha ascenção desesperada até o chefe, teria imaginado que ia ter saudades do elevador que foi a minha prisão. Como explicar a minha presença nesta terra-de-ninguém. Não tenho pára-quedas para mostrar, nem avião, nem a carcaça de um carro. Quem poderá acreditar que eu vim ao Peru num elevador, à minha frente e atrás de mim a rua, flanqueada pela planície que procura alcançar o horizonte.

E como pode haver comunicação, eu não conheço a língua deste país, poderia muito bem ser surdo-mudo. Talvez fosse melhor se eu fosse surdo-mudo: talvez exista compaixão no Peru. Só me resta a fuga para um lugar deserto, talvez a fuga de uma morte para outra, mas prefiro a fome à faca do assassino. De qualquer maneira, estou sem recursos para me resgatar com meus parcos recursos em moeda estrangeira. Mesmo morrer em serviço me é recusado pelo destino, minha causa é uma causa perdida, empregado de um chefe defunto, minha missão decidida em seu cérebro que não dirá mais nada até que os cofres-fortes da eternidade sejam abertos, cuja combinação os sábios do mundo se esforçam para desvendar no lado de cá da morte. Espero que não seja demasiado tarde, desfaço o nó da minha gravata, cuja posição correta tanto me preocupou quando estava a caminho do encontro com o chefe, e faço desaparecer este detalhe insólito do meu vestuário. Quase joguei fora, uma pista. Ao me voltar, vejo pela primeira vez a aldeia; barro e palha, uma rede numa porta aberta. Suor frio ao ocorrer-me que eu poderia estar sendo observado, mas não consigo distinguir nenhum sinal de vida, a única coisa que se move é um cachorro que remexe num monte de lixo fumegante. Hesitei muito tempo: os homens afastam-se da parede de cartazes e atravessam a rua em diagonal, na minha direção, a princípio sem olhar para mim. Vejo o rosto deles perto de mim, um deles preto, olhos brancos, olhar indefinido: os olhos não têm pupilas. A cabeça do outro é de prata cinzenta. Um longo, tranqüilo olhar, olhos cuja cor não consigo determinar, um vermelho cintila neles. Pelos dedos da mão direita, que pende pesada e que igualmente parece ser de prata, corre um tremor, as veias brilham através do metal. Depois o prateado passa por trás de mim, seguido do preto. Meu medo se dissipa e cede lugar à decepção: não mereço nem mesmo uma facada nem ser estrangulado por mãos de metal. Não havia desprezo no olhar tranqüilo que estava voltado para mim há uma distância de cinco passos. Em quê consiste o meu crime. O mundo não acabou, supondo-se que isso aqui não seja um outro mundo. Como cumprir uma missão desconhecida. Qual poderia ser a minha missão nessa região desolada, longe da civilização.

Como o empregado poderia saber o que se passa na cabeça do patrão. Nenhuma ciência no mundo seria capaz de arrancar a minha missão perdida das fibras do cérebro do morto. A missão será enterrada com ele, os funerais de estadista, que talvez neste momento já estejam sendo realizados, não asseguram a ressurreição. Uma espécie de alegria se apodera de mim, penduro o casaco no braço e desabotoo a camisa: estou dando um passeio. Na minha frente o cachorro atravessa a rua, uma mão no focinho, os dedos voltados para mim e parecem queimados. Jovens cruzam o meu caminho com um ar de ameaça que não me diz respeito. Lá onde a rua se perde na planície, numa atitude que parece de alguém que está esperando por mim, está uma mulher. Estendo os meus braços para ela, há quanto tempo eles não tocam em mulher, e ouço uma voz de homem dizer ESTA MULHER É A MULHER DE UM HOMEM. O tom é definitivo e continuo o meu caminho. Ao me voltar, a mulher estende os braços em minha direção e desnuda os seios. Sobre um aterro ferroviário recoberto pelo capim, dois meninos estão mexendo numa mistura de máquina a vapor com locomotiva que está parada sobre um trilho interrompido.

Como europeu, vejo à primeira vista que é um esforço inútil: este veículo não vai se mexer, mas nada digo às crianças, o trabalho é a esperança, e continuo meu caminho na paisagem que não tem outra tarefa senão esperar o desaparecimento do homem. Agora sei qual é o meu destino. Tiro a minha roupa e jogo fora longe, as aparências não importam mais. Algum dia O OUTRO virá ao meu encontro, o antípoda, o sósia com meu rosto de neve. Um de nós sobreviverá.


[DEBUISSON, GALLOUDEC, SASPORTAS]

DEBUISSON
(Dá um papel a Galloudec. Galloudec e Sasportas lêem.) O governo que nos confiou a missão de organizar aqui em Jamaica uma rebelião de escravos, não está mais no poder. O general Bonaparte dissolveu o Diretório com as baionetas de seus granadeiros. A França se chama Napoleão. O mundo será o que foi, uma pátria para senhores e escravos. (Galloudec amassa o papel.) Porque vocês estão arregalando os olhos. A nossa firma não está mais registrada. Faliu. A mercadoria que temos para vender, pagável em moeda do país lágrimas suor sangue, não está mais sendo negociada neste mundo. (Rasga o papel) Eu os liberto da nossa missão. Você, Galloudec, o camponês da Bretanha. Você, Sasportas, o filho da escravidão. Eu, Debuisson.


SASPORTAS (em voz baixa)
O filho dos senhores de escravos.

DEBUISSON
Cada um com sua própria liberdade ou com sua escravidão. Nosso espetáculo terminou, Sasportas. Cuidado quando tirar a maquilagem, Galloudec. A tua pele pode sair junto. Tua máscara, Sasportas, é o teu rosto. Meu rosto é a minha máscara. (Cobre o rosto com as mãos.)

GALLOUDEC
Isso está indo depresa demais para mim, Debuisson. Sou um camponês, não consigo pensar tão ligeiro. Arrisquei o meu pescoço durante um ano e meio, arrebentei a boca de tanto pregar em reuniões secretas, contrabandeei armas através de cães sangüinários, tubarões e espiões, fiz o papel de idiota nas mesas dos usurários ingleses, aceitando fazer o papel de cachorro, queimado pelo sol e sacudido pela febre nesta maldita parte do mundo sem neve, tudo para esta massa preguiçosa de carne preta que não quer se mexer a não ser quando pisada pela bota, e o que importa a mim a escravidão na Jamaica, vendo as coisas como são, eu sou francês, espera Sasportas, mas eu quero virar negro na hora, se eu vier a entender por que tudo isso não é mais verdade, deve ser riscado, e nada mais de missão, só porque em Paris um general está pedindo uma lição. Que não é nem mesmo francês. Mas escutando você falar, Debuisson, a gente podia pensar que você estava só esperando por esse general Bonaparte.


DEBUISSON
Pode ser que na realidade eu tenha esperado esse general Bonaparte. Assim como a metade da França esperou por ele. Fazer revolução cansa, Galloudec. Durante o sono dos povos, os generais se levantam e quebram o jugo da liberdade, que é tão pesado de carregar. Você vê como ele curva os teus ombros, Galloudec.

SASPORTAS
Acho que eu também não te compreendo, Debuisson. Não te compreendo mais. O mundo, uma pátria para senhores e escravos. Os escravos não têm nenhuma pátria, cidadão Debuisson. E enquanto houver senhores e escravos, não estamos liberados da nossa missão. Que relação tem um golpe de generais em Paris com a libertação dos escravos na Jamaica, que é a nossa missão. Dez mil homens estão esperando por nossas ordens, pela tua ordem, se você quiser. Mas não é preciso que seja tua a voz que dê esta ordem. Eles não estão dormindo, não estão esperando um general. Eles estão prontos para matar e morrer por teu JUGO DA LIBERDADE, com o qual sonharam a vida inteira, que é uma morte cotidiana, como de uma amante desconhecida. Eles não se preocupam com a forma de seus seios nem com a virgindade da vagina. Que importa para eles Paris, um amontoado de pedra distante, que durante um curto espaço de tempo foi a metrópoie de suas esperanças, e a França, um país onde o sol não pode matar, onde o sangue teve a cor da alvorada durante um curto tempo, num continente pálido além da sepultura de Atlântida. Do general de vocês, já esqueci o nome dele, ninguém mais falará dele quando o nome do libertador do Haiti estiver em todos os livros escolares.

(Debuisson ri.) SASPORTAS Você ri.

DEBUISSON
Estou rindo, Sasportas, não me pergunte por que. SASPORTAS
Pode ser que mais uma vez eu não tenha te compreendido. Não sei se devo te matar ou se devo te pedir desculpas.

DEBUISSON
Faça o que você quiser, Sasportas.

SASPORTAS (Ri.)
Ora, Debuisson. Durante um instante eu pensei que você dizia o que estava pensando. Eu deveria ter duvidado. Eu deveria ter imaginado que era um teste. Eu não passei no teste, não é. Cada um de nós precisa ser frio como uma faca quando o sinal for dado e a batalha começar. Não é medo que faz os meus nervos tremerem, é a alegria da expectativa pela dança. Escuto os tambores antes que batam. Escuto com os poros, minha pele é negra. Mas eu duvidei de você, e isto não está certo. Me perdoe, Debuisson. Você mergulhou as mãos no sangue pela nossa causa. Eu vi como isso te custou. Eu te amo por ambas as coisas, Debuisson, porque aquele que precisava ser morto, para que não traísse a nossa causa, era meu semelhante, e ele precisava morrer antes da tortura seguinte, para a qual você, enquanto médico e benfeitor da humanidade, deveria curá-lo das conseqüências da primeira, mas ele disse: me matem, para que eu não possa trair, e você o matou pela nossa causa, enquanto médico e revolucionário. (Sasportas abraça Debuisson.)


DEBUISSON
Você não precisa se desculpar, Sasportas, não era um teste. Os nossos nomes não estarão nos livros escolares e o teu libertador do Haiti, onde agora os nossos libertados investem contra os mulatos libertados, ou vice-versa, vai ter que esperar muito para ter o seu lugar no livro da história. Enquanto isso, Napoleão vai transformar a França numa caserna e a Europa talvez num campo de batalha, de qualquer forma o comércio floresce, e a paz com a Inglaterra não vai tardar, o que une a humanidade são os negócios. A revolução não tem mais pátria, isso não é novidade sob esse sol que talvez nunca iluminará uma nova terra, a escravidão tem múltiplas faces, nós ainda não vimos a última, nem você, Sasportas, nós também não Galloudec, e aquilo que tomamos pela alvorada da liberdade talvez não seja senão a máscara de uma nova e mais terrível escravidão, comparada com a qual o reino do açoite nas Caraíbas e em outros lugares não seja senão uma prova amável da felicidade do paraíso, e talvez a tua amante desconhecida, a liberdade, quando as suas máscaras tiverem sido desgastadas, não tenha outra face senão a traição:

o que você não trair hoje, matará você amanhã. Do ponto de vista médico, a revolução é um aborto, Sasportas: da Bastilha à Conciergerie, o libertador passa a ser guarda da prisão. MORTE AOS LIBERTADORES essa é a última verdade da revolução. E no que concerne ao assassinato que cometi a serviço da causa: o médico como assassino não é um papel novo no teatro da sociedade, a morte não tem tanta importância para os benfeitores da humanidade: um outro estado químico, até a vitória do deserto, toda ruína é um terreno para a construção contra a voracidade do tempo.

Talvez eu só tenha lavado as minhas mãos, Sasportas, quando mergulhei as mãos no sangue pela nossa causa, a poesia foi sempre a linguagem da inutilidade, meu amigo negro. Temos agora outros cadáveres nas costas e eles serão a nossa morte, se não os empurrarmos para a cova. Tua morte se chama liberdade, Sasportas, tua morte se chama fraternidade, Galloudec, minha morte se chama igualdade. Como foi bom montar nelas enquanto ainda eram nossos corcéis, envolvidos pelo vento do amanhã. Agora sopra o vento de ontem. E os corcéis somos nós. Vocês sentem as esporas na carne. Nossos cavaleiros têm bagagem: os cadáveres do terror, as pirâmides da morte. Vocês sentem o medo. A cada dúvida que percorre os meandros de nosso cérebro pesam ainda mais. Uma revolução não tem tempo para contar seus mortos. E nós precisamos de todo nosso tempo para desarmar a revolução negra que preparamos tão cuidadosamente em nome de um futuro que já passou a ser passado, como os outros antes dele.

Porque o futuro aparece na nossa língua somente como singular, Galloudec. Talvez nos mortos seja diferente, se o pó tem voz. Pensa nisso, Sasportas, antes de arriscar o teu pescoço pela libertação dos escravos num abismo que não tem mais fundo desde esta notícia que vou assumir agora, para que não fique nenhum vestígio de nosso trabalho.

Vocês também querem um pedaço. Essa foi a nossa missão, agora só resta o gosto de papel. Amanhã terá sido seguido o destino de outros, toda a ascenção segue a mesma direção, e talvez a estrela já esteja a caminho, vinda do frio do espaço sideral, um bloco de gelo ou de metal, que abrirá um buraco definitivo no terreno da realidade onde sempre voltamos a plantar nossas frágeis esperanças.

Ou o próprio frio que gela o nosso ontem e o nosso amanhã num eterno hoje. Porque não nascemos como árvores, Sasportas, que nada têm a ver com tudo isso. Ou preferes ser uma montanha. Ou um deserto. O que você diz, Galloudec. Porque vocês me fixam o olhar como duas pedras. Porque não estamos simplesmente aí e contemplamos a guerra das paisagens. O que vocês querem de mim. Morram suas próprias mortes, se não mais possuem o gosto pela vida.

Eu não vou ajudar vocês a entrarem no túmulo, isso também não me agrada. Ontem sonhei que estava caminhando por Nova York. O lugar, em ruínas, não era habitado por brancos. Diante de mim, na calçada, erguia-se uma serpente dourada e, quando atravessei a rua, ou antes a selva de metal em ebulição que era a rua, na outra calçada, havia outra serpente. Era de azul luminoso. No meu sonho eu sabia: a serpente dourada era a Ásia, a azul a Africa. Quando acordei, tinha esquecido tudo. Nós somos três mundos: o motivo, agora eu sei. Escutei uma voz dizer: VEJA UM GRANDE TERREMOTO ACONTECEU POIS O ANJO DO SENHOR DESCEU DOS CÉUS APROXIMOU-SE E AFASTOU A PEDRA DA PORTA E SENTOU-SE SOBRE ELA E SUA IMAGEM ERA COMO O RAIO E SUA VESTIMENTA BRANCA COMO A NEVE. Não quero saber mais nada disso tudo. Há mil anos que riem das nossas três amadas. Rolaram em todas as sarjetas, jogaram esgoto abaixo em todo mundo, arrastaram por todos os bordéis, nossa puta a liberdade, nossa puta a igualdade, nossa puta a fraternidade. Agora eu quero estar sentado lá onde há riso, livre para tudo que me aconteça, igual a mim mesmo, irmão de mim mesmo e de mais ninguém. Tua pele continua preta, Sasportas. Você, Galloudec, continua um camponês. Riem de vocês. Meu lugar é lá, onde riem de vocês. Eu rio de vocês. Rio do negro. Rio do camponês. Rio do negro que quer ficar branco com a liberdade. Rio do camponês que anda com a máscara da igualdade. Rio da imbecilidade da fraternidade que me deixou cego, a mim, Debuisson, senhor de quatrocentos escravos, que só tenho que dizer sim, sim e sim, à ordem sagrada da escravatura; cego, Sasportas, à tua pele suja de escravo, à tua rotina quadrúpede de camponês, Galloudec, tendo no pescoço o jugo com o qual os bois caminham sobre os sulcos dó teu campo, que não te pertence. Quero a minha fatia do bolo do mundo. Vou cortar da fome do mundo, a minha fatia do bolo. Vocês, vocês não têm faca.

SASPORTAS
Você rasgou uma bandeira que era minha. Vou cortar uma nova para mim, na minha pele de negro. (Corta com a faca uma cruz na palma da própria mão.) Esta é a despedida, cidadão Debuisson. (Espalma sua mão que sangra sobre o rosto de Debuisson.) Gosta do meu sangue. Eu disse que os escravos não têm pátria. Isso não é verdade. A pátria dos escravos é a revolta. Eu vou ao combate armado com as humilhações da minha vida. Você me deu uma arma nova, te agradeço por ela. Pode ser que o meu lugar seja na forca e talvez a corda já esteja à volta do meu pescoço enquanto falo com você em vez de matar você, a você a quem não devo mais nada a não ser a minha faca. Mas a morte não tem importância, e na forca eu vou saber que meus cúmplices são os negros de todas as raças, cujo número cresce a cada minuto que você passa na gamela dos senhores de escravos, ou entre as coxas da tua puta branca. Cada pulsação da revolução fará renascer carne em seus ossos, sangue em suas veias, vida em sua morte. A revolta dos mortos será a guerra da paisagem, nossas armas as florestas, as montanhas, os mares, os desertos do mundo. Eu serei floresta, montanha, mar, deserto. Eu, isto é, a África. Eu, isto é, a Ásia. As duas Américas sou eu.

GALLOUDEC
Vou contigo, Sasportas. Todos nós temos que morrer, Debuisson. E isso é tudo o que ainda temos em comum. Depois do massacre de Guadalupe, em meio a um monte de cadáveres, todos negros, encontraram um branco que estava tão morto quanto eles. Isto, pelo menos, não pode mais acontecer com você, Debuisson. Você está fora.


DEBUISSON
Fiquem. Tenho medo da beleza do mundo, Galloudec. Sei bem que ela é a máscara da traição. Não me deixem sozinho com a minha máscara, que já penetra na minha carne e não dói mais. Me matem antes que eu traia vocês. Tenho medo, Sasportas, da vergonha de ser feliz nesse mundo.




Disse cochichou gritou Debuisson. Mas Galloudec e Sasportas foram embora um com o outro, deixando Debuisson só com a traição que se aproximara dele como a serpente saída da pedra. Debuisson fechou os olhos resistindo à tentação de olhar de frente para seu primeiro amor, que era a traição. A traição dançava. Debuisson pressionou os olhos com as mãos. Ouvia seu coração bater ao ritmo dos passos da dança.

As batidas do coração se tornavam mais rápidas. Debuisson sentiu as pálpebras estremecerem contra as palmas das mãos. Talvez a dança já tivesse terminado e era apenas seu coração que batia, enquanto que a traição, os braços talvez cruzados sobre o peito, ou as mãos nos quadris ou já encravadas no colo, o sexo talvez já estremecendo de desejo, olhava-o através de olhos marejados, a ele, Debuisson, que agora pressionava os olhos com os punhos fechados, apertando as órbitas, resistindo à sede de sua vergonha de felicidade. Talvez a traição já o tivesse abandonado. Suas mãos ávidas recusavam obedecer. Abriu os olhos. A traição mostrava seus seios, em silêncio abria as coxas. Sua beleza atingiu Debuisson como um machado. Ele esqueceu a tomada da Bastilha, a marcha da fome dos oitenta mil, o fim da Gironda, sua ceia, um morto à mesa, Saint Just, o anjo negro, Danton, a voz da revolução, Marat curvado sobre o punhal, o queixo quebrado de Robespierre, seai grito, quando o carrasco lhe arrancou a venda, seu último olhar de compaixão sobre o júbilo da multidão. Debuisson agarrou-se à última recordação que ainda não o havia abandonado: uma tempestade de areia diante de Las Palmas, grilos chegando junto com a areia ao navio o acompanharam na travessia do Atlântico. Debuisson protegia-se contra a tempestade de areia, esfregou os olhos para tirar a areia, fechou os ouvidos para não escutar o canto dos grilos. Aí a traição se jogou sobre ele como um céu, a felicidade dos lábios de uma vagina vermelha.

Portuguese: A Missão. Translated by: Peixoto, Fernando. Published in: Quatro textos para teatro. Editoria Hucitec. Sao Paulo. 1987, p. 35-56.

Autógrafo de Heiner Müller em sua visita a São Paulo, MASP, 19.07.1988

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